sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Calor humano

O céu de terramoto soava como um camião despejando gravilha e ainda assim os lisboetas andavam na rua - de pés molhados e kispos e chapéus-de-chuva sujeitos a sofrer uma fractura exposta por causa do vento. Dia escuro como um desastre natural, pedaços de gelo sapateando no alcatrão e tu correndo rua a baixo com palavrões na boca e os ténis em cheio numa poça. Mas o indiano da tua rua chamou-te para dentro do seu estabelecimento, abrigou- -te na pequena sala com uma só cadeira de barbeiro, tesouras, pentes tão coloridos como especiarias num mercado, a televisão bombando Bollywood e um mapa da Índia feito à mão. Pediu desculpa por estar ao telemóvel e virou o aquecedor para ti. Ficaste ali alguns minutos, querias saber o nome do homem que falava numa língua que não percebes. Mas parou de chover e disseste adeus, saindo para a rua onde, segundos depois, voltaste a correr por causa da galdéria da chuva. Entraste num táxi e a motorista loira, de óculos escuros na cabeça, ligou o aquecimento quando te percebeu encharcado. Falaram, claro, sobre o tempo. Não lhe perguntaste o nome, mas não te importarias que a viagem fosse mais longa. Num dia tão feio, uma cadeira de barbeiro ou um banco de táxi também servem de colo. Na rua viste, debaixo de um toldo, uma miúda de olhos azuis (tão gira) com um cigarro na boca. Procurava lume na carteira. Tiraste o isqueiro do bolso e sorriste. Ela agradeceu e foste embora sem lhe perguntar o nome. Não faz mal. Nem sempre é preciso conhecer bem aqueles que nos tratam como gostariam de ser tratados.

Hugo Gonçalves - Jornal i

1 comentário:

Dreams disse...

Amei este texto!! :)