Ele tem um fato e a cara bronzeada e nenhum relógio no pulso. Ela faz parte da tribo hippie chic, transporta um tapete de ioga, tem sardas de sol indiano ou sul-americano, lê um livro em francês, aposto que gosta de dançar em biquíni em festivais na praia. Ele reparou nela assim que entrou na plataforma da estação. Senta-se no mesmo banco, sorri como se estivesse à espera de ser atendido numa loja, não perde tempo, aponta para o livro: "Sabias que o Rimbaud perdeu uma perna?" Ela não responde, testa a rapidez do atrevido que lhe interrompeu a leitura. Ele diz: "E traficava armas." Ela: "Gostas de Rimbaud?" Ele: "Não, mas só posso simpatizar com um tipo que prefere ser criminoso a poeta." Ela: "És um macho alfa." Ele: "Não vou ao ginásio nem uso gel." Ela: "Tens praticado o discurso em casa, só de boxers e meias?" Ele: "Quem foi o homem, ou a mulher, que te fez ter tão baixas expectativas em relação aos seres humanos?" Ela: "Isso não é de um filme antigo?" Ele: "Mais ou menos, fiz uma adaptação." Ela: "És um plagiador do engate." Ele: "Sabes que mexes os lábios quando lês?" Ela: "Vem aí o metro." Ele: "Então adeus, vou para o outro lado, só vim aqui para falar contigo." Ela: "Não me vais pedir o telefone?" Ele: "Passo aqui amanhã, à mesma hora, a ver se te encontro, como naquele filme em Viena, afinal sou um plagiador do engate." Ela sorriu, ele subiu as escadas e foi-se sentar numa esplanada. Olhou para a miúda na mesa do lado, que lia "Terna é a Noite", e disse: "Sabias que quando estava a escrever o Fitzgerald só bebia Coca-Cola?"
Hugo Gonçalves - Jornal i
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