Vítor passou da mercearia para o apartamento quando vendeu a carrinha por causa do preço do gasóleo. Em casa, depois do trespasse do estabelecimento, ficava na companhia das fotos da falecida e das notícias na TV. De vez em quando a filha visitava-o. Marta não precisava de fazer nada porque o pai tinha a mesma organização asseada que a mulher que fora dona-de-casa a vida inteira. Não faltava comida nem havia roupa por arrumar. Ela via televisão com o pai, quase sempre calados, e quando acordava na manhã seguinte ele já tinha preparado o pequeno-almoço: Farinha Pensal com Cacau, como nos dias em que Marta ia para a primária na carrinha da escola. Ela nunca falava do trabalho de designer, do cancelamento da psicoterapia porque tinha um empréstimo a pagar, de um pedido de casamento que recebera. No dia em que a greve dos transportes a impediu de chegar a horas entrou em casa do pai e Vítor estava em pé, em frente do ecrã, como velando um cadáver: "Uma mulher esteve morta em casa nove anos antes de ser encontrada." Marta estava farta de más notícias e cansada das noites de silêncio com o pai, uma lembrança das visitas ao hospital onde a mãe iludia a mortalidade a ver novelas e o pai dormia numa poltrona. Vítor perguntou: "Tens um namorado?" Marta respondeu como se quisesse esbofetear a humanidade: "Uma namorada, vamos casar." O pai deu-lhe um beijo na cara e disse: "Ao menos, se eu morrer aqui dentro, já tenho duas pessoas que me vão procurar." E Marta chorou como não chorara no funeral da mãe.
Hugo Gonçalves - Jornal i
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